O nome dela é Tokoe. Ou melhor,
este é o nome com que índios do Tocantins a batizaram quando ela passou
dias comendo e dormindo na tribo, por opção. Acabou filmando, a pedido
deles, o documentário "Hotxuá",
lançado em 2009. Aos 40 anos, Letícia Sabatella carrega no currículo
duas estadias na tribo dos Krahôs, um acampamento com integrantes do
Movimento dos Sem Terra (MST), diversas participações em campanhas
relacionadas ao meio ambiente e muitas idas ao Pará – estado com quadro
histórico de trabalho escravo. Ah, sim, ela também é atriz.
Mineira,
Letícia se mudou para Curitiba aos quatro anos. Aprendeu com a mãe,
criada em fazenda, e com o pai, engenheiro de usina hidrelétrica, a ter
uma relação próxima com a natureza. Hoje, seja nos pequenos hábitos,
como separar o lixo – que depois o porteiro acaba misturando – ou nas
grandes manifestações de apoio aos sem-terra e aos índios, Letícia se
destaca entre as celebridades pela vocação para ambientalista.
Integrante do Movimento Humanos Direitos,
fundado em 2000, ela se reveza com artistas como Dira Paes e Camila
Pitanga para usar a fama em favor de ativistas ameaçados de morte.
Esperanças para a Rio+20
"Tomara
que não seja apenas uma festa. Temos de aproveitar esse momento tão
bonito de união, de esperança, para aliarmos o discurso à prática, à
nossa política econômica. Fui convidada para participar de alguns
eventos durante a conferência, mas ainda sei se vou participar mesmo".
O início
"Em
1992, eu fui para a Rio Maria, uma cidade do extremo sul do Pará, pela
primeira vez. Eu estava grávida e lá encontrei líderes sindicais
ameaçados de morte, junto com o padre Ricardo Rezende. Lembro de ver as
queimadas ao longo da viagem, na Região Amazônica. Os fazendeiros
queimavam tudo para transformar em pasto. Eram grandes extensões de
terra sendo destruídas. Plantações de babaçu, muito importantes para a
economia regional, eram queimadas pelos grandes latifundiários, que
botavam gado no lugar. E isso não gerava benesse alguma para a região,
apenas para fora. Era triste de ver. Mas, lá, eu ouvi algo que me
pareceu uma metáfora para a luta dessas pessoas, que estavam sendo
ameaçadas e assassinadas em grande escala: quando você queima o babaçu,
ele nasce mais forte. Chega um momento que a terra não dá mais conta e a
região vira um deserto, como a gente viu acontecer com a Zona da Mata,
de tanto se plantar apenas cana-de-açúcar. Mas, assim que você queima o
babaçu, ele se torna mais resistente. E é assim com as pessoas também,
que têm a causa da luta revigorada".
Lições da tribo
"Os
índios Krahôs, que eu conheci mais intimamente, têm santuários
ecológicos, que eles nunca vão explorar. Eles já passaram fome, já
passaram muita dificuldade, mas eles nunca vão a esses lugares, porque
acreditam que, se explorarem, tudo vai se acabar. E esse limite a gente
tem que reconhecer que é o limite do sagrado em relação ao meio ambiente
e o nosso como Humanidade. Temos que pensar até onde e de que forma a
gente pode interferir. Precisamos aprender muito com a filosofia de
equilíbrio que os índios têm. Eles foram fundamentais para que a
floresta tropical como conhecemos passasse a existir e são essenciais
para a saúde do planeta".
"Hotxuá", um filme sobre índios
"Eu
aprendi a dirigir com uma tribo indígena, a tribo dos Krahôs. Não
pensava em dirigir coisa alguma até então. Considerava fazer o
documentário um dever. Era como se, para viver, eu precisasse fazer
aquilo. E eles queriam também. Passavam muita dificuldade... a primeira
vez que fui lá, em 1996, tinha muita desnutrição, muito abandono. Já
chegaram a existir somente cem Khrahôs. Hoje, são três mil e ocupam uma
área de 320 mil hectares de cerrado no Tocantins preservada graças à
presença deles.
Os Krahôs também
são conhecidos por rirem muito. Os grandes líderes krahôs são uma
espécie de palhaço sagrado, os hotxuás, que divertem toda a tribo e usam
a sabedoria e o humor para resolver questões sérias, como brigas. Eles
têm uma alegria genuína. Não há, por exemplo, registro de suicídios
entre os Krahôs, o que é tão comum em outras tribos".
Movimentos sociais
"Existem
pessoas que precisam andar com escolta, com a Polícia Federal do lado,
porque senão podem ser mortas a qualquer momento. Às vezes, valorizamos
muito o sucesso midiático, mas temos vários heróis que estão escondidos.
E é legal que eles sejam reconhecidos como construtores de um país
melhor também. Conheci muitas pessoas maravilhosas, como o Padre Ricardo
Rezende, que é uma figura histórica marcada de morte; o Frei Henri des
Roziers, um jurista francês que está no sul do Pará desde 1974; o Frei
Betto; Leonardo Boff. Com eles, conheci o sul do Pará e o grave problema
do trabalho escravo.
E há tantas
outras pessoas como o padre Josimo Tavares e a irmã Dorothy – que foram
assassinados –, e os irmãos Canuto. As famílias e os amigos continuam
lutando, e com leveza de espírito e amor, apesar de terem sofrido
atentados, terem sido torturados, passado por represálias. Tudo isso por
buscar um modelo de desenvolvimento mais justo, com melhor distribuição
dos bens, com um raciocínio mais amoroso para lidar com o nosso
patrimônio ambiental. Não se pode tratar apenas como recurso para gerar
lucro imediato, mas como algo que deva persistir aos tempos que a gente
ainda tem para atravessar enquanto humanidade".
Hábitos sustentáveis
"Fui
vegetariana por 14 anos, mas, hoje em dia, eu como carne. Aprendi com
os Krahôs que é preciso ter equilíbrio. Acredito que uma alimentação
orgânica é mais a favor do meio ambiente que uma alimentação
vegetariana. Sempre que posso opto por orgânicos. As plantações
orgânicas dão conta da mesma quantidade de produção que as plantações
convencionais e ainda favorecem muitas pessoas que trabalham com
agricultura familiar.
Aprendo muito
com minha filha, Clara, de 19 anos. Coisas pequenas como fechar a
torneira que está pingando. Não consigo consumir muito também. É claro
que gosto de me enfeitar, mas costumo usar muita roupa velha. Detesto
jogar coisas fora. Vou guardando na esperança de um dia vir a usar de
novo.
Sempre separo meu lixo
também, mas soube pelo meu porteiro que ele mistura tudo depois. Em
Curitiba, separar o lixo funciona, mas, aqui no Rio, acho que não tem
coleta seletiva de verdade ainda. É uma pena ver materiais que podem ser
reaproveitados irem para o lixo".
Fonte: O Globo
19/06/2012
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