"Hoje, me sinto apta para viver qualquer personagem. Posso pegar um papel dificílimo, que sei que vou dar conta. Não sinto um peso a mais. Isso vem quando amadurecemos."
Letícia Sabatella

terça-feira, 19 de junho de 2012

Letícia Sabatella: 'Tomara que a Rio+20 não seja só uma festa'


O nome dela é Tokoe. Ou melhor, este é o nome com que índios do Tocantins a batizaram quando ela passou dias comendo e dormindo na tribo, por opção. Acabou filmando, a pedido deles, o documentário "Hotxuá", lançado em 2009. Aos 40 anos, Letícia Sabatella carrega no currículo duas estadias na tribo dos Krahôs, um acampamento com integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST), diversas participações em campanhas relacionadas ao meio ambiente e muitas idas ao Pará – estado com quadro histórico de trabalho escravo. Ah, sim, ela também é atriz.
Mineira, Letícia se mudou para Curitiba aos quatro anos. Aprendeu com a mãe, criada em fazenda, e com o pai, engenheiro de usina hidrelétrica, a ter uma relação próxima com a natureza. Hoje, seja nos pequenos hábitos, como separar o lixo – que depois o porteiro acaba misturando – ou nas grandes manifestações de apoio aos sem-terra e aos índios, Letícia se destaca entre as celebridades pela vocação para ambientalista. Integrante do Movimento Humanos Direitos, fundado em 2000, ela se reveza com artistas como Dira Paes e Camila Pitanga para usar a fama em favor de ativistas ameaçados de morte.

 Esperanças para a Rio+20 
"Tomara que não seja apenas uma festa. Temos de aproveitar esse momento tão bonito de união, de esperança, para aliarmos o discurso à prática, à nossa política econômica. Fui convidada para participar de alguns eventos durante a conferência, mas ainda sei se vou participar mesmo".

 O início 
"Em 1992, eu fui para a Rio Maria, uma cidade do extremo sul do Pará, pela primeira vez. Eu estava grávida e lá encontrei líderes sindicais ameaçados de morte, junto com o padre Ricardo Rezende. Lembro de ver as queimadas ao longo da viagem, na Região Amazônica. Os fazendeiros queimavam tudo para transformar em pasto. Eram grandes extensões de terra sendo destruídas. Plantações de babaçu, muito importantes para a economia regional, eram queimadas pelos grandes latifundiários, que botavam gado no lugar. E isso não gerava benesse alguma para a região, apenas para fora. Era triste de ver. Mas, lá, eu ouvi algo que me pareceu uma metáfora para a luta dessas pessoas, que estavam sendo ameaçadas e assassinadas em grande escala: quando você queima o babaçu, ele nasce mais forte. Chega um momento que a terra não dá mais conta e a região vira um deserto, como a gente viu acontecer com a Zona da Mata, de tanto se plantar apenas cana-de-açúcar. Mas, assim que você queima o babaçu, ele se torna mais resistente. E é assim com as pessoas também, que têm a causa da luta revigorada".

Lições da tribo
"Os índios Krahôs, que eu conheci mais intimamente, têm santuários ecológicos, que eles nunca vão explorar. Eles já passaram fome, já passaram muita dificuldade, mas eles nunca vão a esses lugares, porque acreditam que, se explorarem, tudo vai se acabar. E esse limite a gente tem que reconhecer que é o limite do sagrado em relação ao meio ambiente e o nosso como Humanidade. Temos que pensar até onde e de que forma a gente pode interferir. Precisamos aprender muito com a filosofia de equilíbrio que os índios têm. Eles foram fundamentais para que a floresta tropical como conhecemos passasse a existir e são essenciais para a saúde do planeta".

"Hotxuá", um filme sobre índios
"Eu aprendi a dirigir com uma tribo indígena, a tribo dos Krahôs. Não pensava em dirigir coisa alguma até então. Considerava fazer o documentário um dever. Era como se, para viver, eu precisasse fazer aquilo. E eles queriam também. Passavam muita dificuldade... a primeira vez que fui lá, em 1996, tinha muita desnutrição, muito abandono. Já chegaram a existir somente cem Khrahôs. Hoje, são três mil e ocupam uma área de 320 mil hectares de cerrado no Tocantins preservada graças à presença deles. 
Os Krahôs também são conhecidos por rirem muito. Os grandes líderes krahôs são uma espécie de palhaço sagrado, os hotxuás, que divertem toda a tribo e usam a sabedoria e o humor para resolver questões sérias, como brigas. Eles têm uma alegria genuína. Não há, por exemplo, registro de suicídios entre os Krahôs, o que é tão comum em outras tribos". 

Movimentos sociais 
"Existem pessoas que precisam andar com escolta, com a Polícia Federal do lado, porque senão podem ser mortas a qualquer momento. Às vezes, valorizamos muito o sucesso midiático, mas temos vários heróis que estão escondidos. E é legal que eles sejam reconhecidos como construtores de um país melhor também. Conheci muitas pessoas maravilhosas, como o Padre Ricardo Rezende, que é uma figura histórica marcada de morte; o Frei Henri des Roziers, um jurista francês que está no sul do Pará desde 1974; o Frei Betto; Leonardo Boff. Com eles, conheci o sul do Pará e o grave problema do trabalho escravo. 
E há tantas outras pessoas como o padre Josimo Tavares e a irmã Dorothy – que foram assassinados –, e os irmãos Canuto. As famílias e os amigos continuam lutando, e com leveza de espírito e amor, apesar de terem sofrido atentados, terem sido torturados, passado por represálias. Tudo isso por buscar um modelo de desenvolvimento mais justo, com melhor distribuição dos bens, com um raciocínio mais amoroso para lidar com o nosso patrimônio ambiental. Não se pode tratar apenas como recurso para gerar lucro imediato, mas como algo que deva persistir aos tempos que a gente ainda tem para atravessar enquanto humanidade".

Hábitos sustentáveis 
"Fui vegetariana por 14 anos, mas, hoje em dia, eu como carne. Aprendi com os Krahôs que é preciso ter equilíbrio. Acredito que uma alimentação orgânica é mais a favor do meio ambiente que uma alimentação vegetariana. Sempre que posso opto por orgânicos. As plantações orgânicas dão conta da mesma quantidade de produção que as plantações convencionais e ainda favorecem muitas pessoas que trabalham com agricultura familiar. 
Aprendo muito com minha filha, Clara, de 19 anos. Coisas pequenas como fechar a torneira que está pingando. Não consigo consumir muito também. É claro que gosto de me enfeitar, mas costumo usar muita roupa velha. Detesto jogar coisas fora. Vou guardando na esperança de um dia vir a usar de novo. 
Sempre separo meu lixo também, mas soube pelo meu porteiro que ele mistura tudo depois. Em Curitiba, separar o lixo funciona, mas, aqui no Rio, acho que não tem coleta seletiva de verdade ainda. É uma pena ver materiais que podem ser reaproveitados irem para o lixo".

Fonte: O Globo 

19/06/2012

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